AS CARTAS
Outro dia acordei com uma estranha urgência de ter cartas lidas. Não que eu seja do tipo místico, mas o barulhinho das cartas, a voz monótona da cartomante, o aroma de charuto barato – tudo isso me traz uma certa tranquilidade, me leva de volta à infância, quando minha mãe frequentava os terreiros de umbanda. Independente do que seja dito durante a leitura.
Por coincidência, encontrei uma feirinha mística logo após o trabalho… identifiquei logo a cartomante, pelos trajes. Sempre descuidadas, agasalhadas além da conta, sempre com blusas de lã de botão, são tão caracterizadas como as ciganas, à sua maneira.
Maneiras suaves e simples, por sinal, as com que ela me guiou à sua tendinha. E logo fui transportado para um pequeno mundo espiritual encravado no meio de um shopping center, com uma quente luz alaranjada – a cor do tecido da tenda – e uma mesinha com um caderno escolar pequeno, pequenos santos, uma taça de água, uma nota de 1 real, uma bala calibre 22 antiga, guias e colares. A moça anotou meu nome e data de nascimento com a letra redonda e infantil de quem não teve a oportunidade de permanecer muito tempo na escola.
Talvez seja por isso que gosto das cartomantes e ciganas – num mundo onde astrólogos ficam ricos e magos ingressam em academias de letras, ver uma pessoa humilde com o poder de ver o futuro é alentador.
Foi esse pensamento que ela interrompeu pedindo para cortar as cartas, um belo baralho com ilustrações medievais, plastificado há anos, com algumas cartas abrindo. Interessante ver essas cartas nesse estado, inteiras atrás de um plástico destroçado. Tentar trocar o plástico destruiria a carta, mas enquanto ela estivesse com ele, por pior que fossse seu estado, teria sua beleza intocada. Alguns de nós usamos máscaras para nos defender, assim como aquelas cartas de tarô.
Detalhes, detalhes, detalhes. A essa altura eu já havia suprimido o aroma de charuto, e a moça nem tão moça assim começa a ler, a primeira de uma série enorme de cartas. Como sempre, cartomantes erram no geral, mas acertam em detalhes perturbadoramente íntimos e nada óbvios. A leitura normalmente nunca é precisa o suficiente para trazer fé, apenas o necessário para trazer esperança. E, convenhamos, esperança é um fabuloso animalzinho – sobrevive com quase nada.
A maior parte do tempo fiquei absorto em meus pensamentos, sem prestar atenção nas observações. Eu precisava apenas do ambiente. Mas não pude evitar ficar com a nuca eriçada com a precisão de algumas delas. E, como sempre, ela sabia qual era meu orixá – nunca erraram.
Já no final da consulta, com a mochila às costas e uma mão abrindo a cortina da tendinha – uma lufada de ar condicionado entra, cheirando a freon – ela me pergunta se eu tomaria um banho de gengibre, caso ela me ensinasse como fazê-lo. Um agnóstico tomando banho de descarrego?? Sim, claro, como não? Não posso deixar de sorrir.
Antes de sair, contudo, faço a pergunta que sempre reluto em fazer em consultas de tarô, mas nunca consegui deixar de:
– Pode tirar apenas uma carta? Só para eu saber quem sou?
Sem se surpreender, talvez até com um sorriso de familiaridade, ela concordou e puxou uma carta ao acaso. Pela quarta vez em quatro consultas, a mesma carta aparece. Quanto será que está custando o gengibre?