Numa bela casa rodeada por um bosque enorme e sombrio viveu muito tempo atrás um barão viúvo e rico com suas três filhas. A mais velha chamava-se Dronha e era talvez a pessoa mais insuportável das redondezas. Porque além de muito feia, com sua boca enorme de dentes pontiagudos, ela conseguia deixar uma impressão horrível em todos que a conheciam. Achava que o mundo conspirava contra ela e não poupava ninguém do seu mau humor, com suas palavras sempre ríspidas e seus olhos apertados em constante irritação. A filha do meio era mais tonta do que propriamente de má índole. Mas era preguiçosa e impaciente, e maltratava todo mundo exigindo que seus desejos fossem satisfeitos imediatamente. Seu nome era Catina e sua aparência de igualava à de Dronha em feiura. O pior de tudo era o contraste entre as duas e a irmã mais nova, Leila. Não havia ninguém que não gostasse dela. Bela como um botão de rosa, parece que sua beleza tornava-se ainda mais exuberante pela alegria e doçura que acompanhavam todos os seus gestos, pela graça do seu olhar, pelo acolhimento atencioso que dispensava a quem se aproximava dela. Por sua causa, a situação das outras irmãs ficava ainda mais delicada. Era evidente, por exemplo, a preferência do velho barão pela filha mais nova e, o mais grave, todos os jovens do povoado só pediam a mão de Leila em casamento. Para garantir que as outras duas não ficassem solteiras, o pai dizia que só permitiria que Leila se casasse depois das irmãs. Isso não adiantou nada já que ninguém aparecia para cortejar Dronha e Catina.
Um dia elas pediram ao pai que não deixasse mais Leila ir junto com elas aos bailes e festas, para ver se alguém as convidava para dançar. Assim foi feito mas mesmo Leila tendo concordado de bom grado em não sair de casa, as irmãs ficavam a noite inteira sentadas num canto da festa, ignoradas por todos. A raiva que as duas sentiam de Leila foi aumentado dia a dia, até que Dronha chamou Catina e lhe disse:
- Temos que fazer alguma coisa para nos livrarmos de Leila. Se ela continuar viva, não há esperança para nós, vamos ficar solteiras até nossa morte.
- Que horror – disse Catina -, ela é nossa irmã, você não pode nem pensar em fazer nada contra ela. Não conte comigo para nenhum plano.
- Pois então está bem. Cuido de tudo sozinha, não preciso mesmo de uma idiota que só atrapalha como você.
No dia seguinte Dronha convidou Leila para um passeio no bosque. Leila ficou feliz, afinal quase nunca saía de casa e adorava caminhar no meio das árvores. As duas passaram a tarde conversando enquanto se embrenhavam cada vez mais para o fundo do bosque, onde havia um grande precipício à beira do caminho. Foi para lá mesmo que Dronha conduziu a irmã sem que ela desconfiasse de nada.
- Nossa – disse Leila -, eu nunca tinha chegado até aqui. Imagine se alguém cair lá embaixo, dá medo só de pensar.
- Que tal experimentar esse medo pessoalmente? - gritou Dronha, empurrando Leila com toda força abismo abaixo.
No meio da queda, a pobre menina agarrou um ramo de zimbro enraizado no morro e ali ficou dependurada, tentando não soltar a mão de jeito nenhum.
- Por favor – ela dizia -, não faça isso comigo, Dronha. Não me deixe morrer nesse lugar. Ajude-me a sair daqui.
- Vou ajuda-la, com certeza – respondeu a irmã completamente transtornada. E, pegando um pedaço de pau, Dronha bateu com fúria na mão da irmã que segurava o galho de zimbro.
Com um grito de dor, Leila largou o galho e caiu nas profundezas do abismo. A irmã olhou para baixo e não viu nem sinal dela. No silêncio daquele lugar tenebroso ficou guardado o segredo do seu crime, e ela foi para casa certa de que tinha feito o que era necessário e que agora sua sorte ia mudar.
No dia seguinte o barão achou estranho que Leila não estivesse na casa e que ninguém soubesse dizer para onde ela tinha ido. Preocupado, ordenou que os empregados dessem uma busca nos arredores, depois foi ele mesmo acompanhado de homens valorosos procurar a menina nos quatro cantos daquele reino, dia e noite sem parar. Mas Leila tinha desaparecido e, por incrível que pareça, ninguém se lembrou de procurá-la no abismo do bosque. Um ano se passou, e enquanto na casa grande o barão chorava a perda de sua filha querida, Leila jazia sem vida no fundo do precipício. Mas enquanto seu corpo se decompunha e se misturava à terra, às folhas secas, às pedras e à areia, o ramo de zimbro de permanecia na sua mão foi se enraizando e ganhando força no meio daquele solo fértil e úmido. Depois de dois anos transformou-se numa árvore comprida, cujos ramos mais altos chegaram até o caminho, à beira do abismo. A copa imponente da árvore de zimbro balançava ao vento, e de seus galhos emanava uma estranha melodia, que em tudo se parecia com uma música cigana.
Todos os dias, atraído por essa melodia, um jovem pastor cigano chamado Lavuta se aproximava da árvore sentava-se embaixo dela. Ele era conhecido como o melhor tocador de violino da região. As pessoas diziam que, quando ele tocava, era como se os mais melodiosos espíritos da floresta estivessem animando seu coração e seus dedos. Todos paravam seus afazeres para escutá-lo, até as crianças, as plantas, os animais e os rios se aquietavam num silêncio embevecido, quando Lavuta tocava.
Toda vez que ele ouvia o lamento da árvore de zimbro, deixava seu rebanho e vinha para perto dela, sentava-se, punha seu velho violino sob o queixo e começava a tocar. O violino estava bastante estragado, mas Lavuta gostava dele como se gosta de um amigo querido. Um dia, enquanto tocava entretido embaixo da árvore, o arco do violino se partiu. Lavuta depositou o violino no chão para examinar o arco, e no mesmo instante o violino escorregou precipício abaixo. Ele se levantou de um salto mas não conseguiu pegá-lo. O pastor desesperou-se pois aquele violino era tudo que ele tinha neste mundo, e chorou por muito tempo, até adormecer, inconformado, deitado de bruços, com o rosto na terra.
E então ele teve um sonho: ele estava ali, naquele mesmo lugar, escutando os murmúrios dos galhos da árvore de zimbro, e aos poucos o triste lamento foi se transformando numa música que soava como um violino. Ele percebeu que era seu violino que tocava sozinho e, junto com ele, uma voz de mulher cantava uma triste melodia cigana. Ele compreendia muito bem as palavras da canção, que dizia:
“Lavuta, pegue seu violino e toque, para todo mundo saber que eu fui morta por uma mulher má de dentes pontiagudos.”
O pastor, dentro do seu sonho, pensou que não poderia tocar, pois o violino tinha caído no precipício. Como se tivesse escutado seus pensamentos, uma voz ecoou lá do fundo do abismo, dizendo-lhe que cortasse o alto do tronco da árvore de zimbro e que com a madeira fizesse outro violino.
Quando acordou logo em seguida, Lavuta lembrou do sonho com todos os detalhes, achou tudo muito estranho, mas ao mesmo tempo resolveu não dar muita importância, pois aquilo tinha sido apenas um sonho.
Depois de reunir o rebanho, ele voltou para seu quarto, que ficava num lugar distante, dentro das terras do barão. Naquela mesma noite ele teve outro sonho: via uma linda jovem entrar no seu quarto segurando um violino. Olhando melhor, percebeu que era seu violino que ela estendia na sua direção. Em língua cigana ela dizia:
- Toque seu violino e depois quebre-o de encontro à mesa. Se fizer isso, eu serei sua mulher.
Em seguida ela desapareceu no ar e Lavuta acordou. Nesse mesmo momento ele tomou uma decisão. Na manhã seguinte, assim que se levantou, foi até a beira do precipício para cortar a árvore de zimbro. Passou o dia inteiro esculpindo e moldando a madeira, até que o violino ficou pronto quando a noite chegou. Feliz da vida, admirando sua obra, Lavuta se preparou para experimentar o violino, mas assim que ele levantou o arco, o violino começou a tocar sozinho. Era a mesma melodia e a mesma voz cantando a canção cigana do seu sonho.
A melodia soava muito alto e chegava lá fora, pela janela aberta do seu quarto. O cuidador de cavalos do barão, que passava por ali naquele momento, ouviu as estranhas palavras daquela música e foi falar com Lavuta.
- Quem está cantando? – ele perguntou.
Lavuta lhe contou toda a história desde seu primeiro sonho, e o amigo o aconselhou a mostrar o violino mágico para o barão.
- Você sabia – ele disse – que a mulher do barão era cigana? Acho que ele vai gostar de conhecer esse milagre e vai até compreender as palavras da canção.
Os dois foram juntos até a casa grande e pediram para ver o barão. Quando ele apareceu, o violino começou a tocar e o pobre arregalou os olhos, sobressaltado:
- É a voz da minha filha. Onde é que ela está?
Ele correu pelos cantos da sala, por toda parte, e não encontrou ninguém. Mas as palavras da música ele havia entendido muito bem, e sabia perfeitamente quem era a mulher má de dentes pontiagudos. Horrorizado, ele foi atrás da filha mais velha e não teve muito trabalho em fazê-la confessar o que havia feito. O velho barão expulsou as duas filhas de sua casa, dizendo-lhes que nunca mais voltassem, achando que Catina tivesse sido cúmplice da irmã, embora ela não soubesse de nada.
Enquanto isso, de volta ao seu quarto, Lavuta ficou um certo tempo segurando o violino mágico, pensando na jovem que havia aparecido no seu sonho.
- Será que é mesmo Leila, a filha do barão? – ele dizia para si mesmo. – Ela prometeu que se casaria comigo se eu quebrasse o violino na mesa.
Ele não sabia se devia ou não acreditar no sonho. Olhou o violino pela última vez e com um gesto firme espatifou-o de encontro à mesa. No mesmo momento, Leila apareceu, viva, diante dele. Na mão ela trazia seu velho violino, consertado, com cordas novas, a madeira brilhando, perfeita. Completamente aturdido, Lavuta escutou sua história.
- Durante dois anos eu fiquei enterrada no abismo – ela começou, falando com voz doce e perfumada. – Minha mãe foi uma cigana conhecedora das artes da magia. Quando meu pai a conheceu, ficou encantado com sua beleza e apaixonou-se por ela. Ela também o amou, mas antes de se casarem ela foi amaldiçoada por um espírito que a desejava para si. O espírito determinou que todas as crianças que nascessem daquela união seriam feias e más. Depois que minhas duas irmãs nasceram minha mãe suplicou ao espírito que a libertasse do feitiço. Ele concordou, com uma condição: quando ela tivesse outra criança, deveria morrer e ir viver com ele no reino dos espíritos. O preço da minha beleza foi a morte da minha mãe. Depois, quando minha irmã me empurrou no precipício, a alma da minha mãe se converteu no ramo de zimbro que eu agarrei na queda. E foi segurando o ramo, a mão de minha mãe, que eu caí lá embaixo. Criando raízes, o ramo virou árvore e eu pude nascer pela segunda vez do corpo da minha mãe. Mas minha forma humana eu só poderia recuperar se um homem transformasse a madeira da árvore no objeto mais querido do seu coração. Você amava seu violino, Lavuta, e quando ele caiu no abismo eu sabia que apenas você, com seu amor, poderia me devolver à vida. Por isso apareci no seu sonho e agora estou aqui.
- Parece que o que tinha que acontecer já foi feito – disse Lavuta. – Eu recebi meu violino de volta e você voltou a viver. Mas também me lembro de uma certa promessa...
- Eu não a esqueci – disse Leila com um sorriso encantador. – Você não quer experimentar seu violino antes de mais nada?
Lavuta se preparou para tocar e, como antes, o violino começou a tocar sozinho a melodia do sonho acompanhada da canção cigana. Pouco depois, o barão entrou , atraído pela música, e mal pôde acreditar quando viu a filha estendendo os braços apara abraçá-lo.
- Meu pai – ela disse -, o pastor Lavuta me devolveu à vida e eu prometi casar-me com ele.
O velho barão estava tão radiante que não fez nenhuma objeção ao casamento. Pouco importava se seu futuro genro era um pobre pastor; a única coisa que ele queria era ver sua filha feliz e viva.
E ele nunca teve nenhuma razão para se arrepender do seu consentimento. O pastor Lavuta ficou conhecido em todo o reino, não por ter se casado com a filha do barão, mas sim por ser o maior violinista de que aquele povo teve notícia. Até hoje se contam histórias que falam de como Leila e Lavuta se amaram, dos filhos que tiveram e de como o pastor prosperou e tornou-se senhor daquelas terras, graças à sua arte, que a todos encantava. Mas todas as histórias que foram contadas, de geração em geração, começam falando do verdadeiro amor e da sabedoria de uma mulher cigana.
Recontado por Regina Machado em: O violino cigano e outros contos de mulheres sábias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.