sexta-feira, 17 de setembro de 2021

* O ERÊ QUE NÃO QUERIA DOCES*.

 

* O ERÊ QUE NÃO QUERIA DOCES*.


Pode ser uma imagem de 1 pessoaE o clima era de felicidade, festa de Cosme e Damião, não era para ser diferente. Várias crianças se aglomeravam na assistência do terreiro, enquanto os cânticos aconteciam, convidando os Erês para brincar no Aiyê (terra).
“Cosme e Damião, a sua casa cheira!
Cheira cravo e cheira rosa,
Cheira flor de laranjeira.”
Como de costume, os médiuns – homens e mulheres adultos – começam a exibir expressões de sorrisos incontidos e se jogam no chão com o típico cruzar de pernas, popularmente conhecido como perna de índio. Começam a falar e pedir seus elementos:
– Oi tio! Oi tia! Eu Cheguei!!! ‘Tô tão feliz!
Pegavam bolas, bonés, atiradeiras, carrinhos e bonecas. Alguns dos adultos usavam até chupeta e penteavam seus cabelos com dois tuchos separados de cabelo. Comiam doces, pediam água com bolinhas (guaraná) e faziam aquela bagunça.
Todos completamente imundos e melados de doces.
Porém, um dos erês manifestado ficava rindo em seu lugar, falando com os consulentes como os demais e trazendo a eles aquela sua doce e encantadora palavra, natural desse linha tão linda. Mas, em momento algum, comia os doces. Claro que seu ponto estava repleto de bombons, que eram devidamente doados a cada um que sentava na sua frente.
Uma cambone estranhando o fato, foi lhe oferecer um pouco de guaraná e também bolo. Eis que o serelepe responde:
– Tia, eu não gosto disso não! É ruim, faz mal!
– Você não gosta de guaraná e de bolo então? – Pergunta a Cambone.
– Gosto não! – Olhou o Erê com o olhar condescendente.
– Mas o que você quer então, pequeno?
– Nada tia, só quero conversar com as pessoas.
– Ah! Mas deve haver algo que você gosta de comer. – Interrogou, forçando, a cambone.
– Tia, olha pra mim. Eu não tenho matéria, então não preciso de comida. Mas eu gosto do gosto de fruta tia. Pêssego, Melancia, Melão, Mamão e Banana! Laranja Lima e Limão também! – Riu gostosamente – e bebo água gostosa e também a água da fruta (suco).
A cambone olhou para a mesa e não viu nada que pudesse agradar o pequeno, pediu desculpas e permaneceu a seu lado, enquanto o pequeno fazia sua mirongas.
Uma senhora começou a servir um lanche embrulhado em papel alumínio para todos os presentes, inclusive para os erês, que se amontoavam para pegar o pequeno embrulho. Chegando perto do Erê que não queria doces, a senhora lhe ofereceu. Ele olhou para ela com o olhar triste, muito caído e disse:
– Tia, eu não como animal!
A Cambone que já tinha levado um susto com a negativa de comer doces, se assustou e disse que era apenas um lanche. Então a criança do Orum diz:
– Dentro tem animal tia. Não se deve comer animal, só se deve amar animal! Brincar! Lamber! E também respeitar o animal tia.
Em choque a senhora que trazia os lanches disse:
– Realmente, tem patê de frango dentro do lanche. Eu não me dei conta, é algo tão natural para nós.
O Erê ouvindo, sorriu para o moça e disse:
– Não se preocupa tia, você fez com boa intenção e Papai do Céu já olhou por você. Agora dê o restante pra quem tem fome de verdade tia, pois quem tá aqui tem fome de fé e não de comida.
E continuou sorrindo e brincando demoradamente com a espada de Ogum que acabara de lhe ser entregue nas mãos.
Salve a sabedoria das Crianças!
Saravá todos os Erês! Omi Iê Ibejada!
“Papai me manda um balão
com todas Crianças que tem lá no Céu!
Tem doce, papai! Tem doce, papai!
Tem doce, lá no jardim!”

terça-feira, 14 de setembro de 2021

"Ela se converteu, mas Iansã não" O enterro do pai de santo

 

 "Ela se converteu, mas Iansã não"
O enterro do pai de santo


Nenhuma descrição de foto disponível.Esta história introduz uma questão importante: A morte no Candomblé, sobretudo o direito aos ritos, nem sempre respeitado pelos familiares.
Ela tinha apenas nove anos quando foi tomada pela força de Iansã. Franzina ainda, corpo de menina. Tornava-se mulher ao som dos atabaques, dançando lindamente, flutuando com as mãos ao vento, espantando as forças nefastas, limpando o terreiro com seus brados de axé. Seu pai, o babalorixá, tinha mais de 40 anos quando a mãe a entregou antes de sair pelo mundo.
Era a filha, a herdeira. Era seu maior orgulho. E cresceu feliz com todas as outras crianças do terreiro. Sob o cuidado das velhas, suas tias, a quem dedicava respeito e obediência. O pai a preparava, era rígido, às vezes até exagerava. Era um amor, um dengo, mas não era fácil, não. E ela não contestava, era uma boa filha, era seu maior orgulho.
Na lida do candomblé ela cresceu. Estudou, se formou, foi trabalhar. O terreiro estava bem estruturado e exercer uma profissão lhe dava um grau de liberdade que a rigidez do ritual nem sempre permitia. Como o pai estava envelhecendo, passou a casa para o nome da filha, que nessa altura andava de namoro com um rapaz da vizinhança.
Um dia ela chega para o pai e conta que está grávida. O pai resistiu à ideia de casamento: “Cuido de você e do meu neto”. Mas ela estava apaixonada. Foi uma linda festa, com a certidão do cartório e a bênção dos orixás. Nasceu o neto e vieram os problemas: o marido não queria ouvir falar de candomblé, afastando a esposa e o filho do terreiro.
Para desgosto do velho pai de santo, com quase 70 anos, a família se converteu. A filha tão querida, sua herdeira, regida por Iansã, tornara-se evangélica. Um desgosto. Mesmo com todo o apoio da comunidade, com o carinho dos filhos e filhas de santo e da velha tia, a única que sobrara forte apesar dos mais de 80 anos, o pai de santo não conseguiu suportar. Entregou-se à tristeza, à dor e sucumbiu com um tumor no estômago.
A morte era esperada, mas o terreiro estava em choque. Quando a primeira quartinha foi emborcada, um misto de angústia e dúvida pairou como névoa: “O que será de tudo isso? O que será de nós?” Preocupações necessárias. Com a herdeira e única filha afastada, a continuidade do terreiro estava em xeque.
A velha tia tomou a frente. Reteve o choro, escondeu a dor e delegou a função de cada um: “Vai chorando e vai fazendo”. O corpo chegou e antes mesmo que fosse tirado do carro funerário, a filha cruzou o portão feito um raio, dura, irascível. “Pode parar”, gritou secamente. “Aqui não vai ter velório nenhum”. Os filhos de santo se revoltaram, os orixás se manifestaram, a vizinhança parou. A velha tia se manteve calma, não moveu os olhos, não franziu uma ruga.
A filha não vinha só, trazia o marido, o filho, o advogado, o pastor e os irmãos da igreja. Nem eram tantos, o pessoal do terreiro até podia resistir, mas ela tinha a escritura e a lei a seu favor. O velho pai morreu dizendo: “Você pode conhecer sua filha, mas você não sabe com quem ela vai casar”.
Discutiram, negociaram e chegaram a um acordo: a filha não tocaria no corpo e o povo do terreiro entregaria a chave e consentiria o velório no cemitério. Não era o que recomendava a tradição, em se tratando de um babalorixá daquela estatura, mas os atos religiosos estavam feitos e seria uma vergonha ver a filha colocar aquele terno preto no pai que viveu e morreu aos pés do orixá. A velha tia ponderou: “É melhor assim”. Seguiram para o cemitério municipal.
A filha prostrou-se ao lado do féretro e recebia com frieza e certo desdém os cumprimentos do povo do axé. Até os pais e mães de santo que a viram crescer, gente que veio da Bahia, do Rio de Janeiro, para se despedir daquele homem tão querido. Os vizinhos que conheciam bem aquela história e lamentavam a morte de um grande líder que sempre ajudou a todos.
A morte era triste, mas não era nada comparada àquela situação. Um velho amigo tentou fazer uma homenagem. “Aqui não vai ter cantoria”, repreendeu a filha. Meia hora antes do enterro, o padre passou para oferecer seus préstimos, ela o escorraçou. Mesmo depois de horas ao lado do caixão, continuava incólume, sem derramar uma lágrima.
Inconformados, os filhos de santo não acreditavam que depois de tanto esforço e luta para manter uma comunidade, tudo acabaria daquela forma. A velha tia seguia estática, num transe triste, introspectivo.
Chegou a hora do enterro. A filha chamou os irmãos da igreja, mas antes que pudessem pegar nas alças do caixão, as mãos fortes de seis ogãs do terreiro o fizeram. A filha pensou em gritar, mas quando a voz da velha tia entoou o cântico, os ogãs entenderam seu olhar e ergueram o caixão aos ombros. Um vento se desprendeu do vácuo, a filha rodopiou num giro abrupto e sentiu a força de Iansã. Em um segundo, uma multidão toda de branco tomou cada espaço.
Vieram todos os orixás, mas Iansã seguiu na frente. Sacudindo os braços, tremendo os ombros e abrindo caminho para o cortejo com sua rama de folhas de peregun. As tias da Bahia comentaram entre si:
– Oxê, mas ela não se converteu?
– Ela se converteu, mas Iansã não.
E aquele povo de branco, aquele tapete de paz e consolo, tomou conta das alamedas. Iansã se pôs na beira da sepultura, e quando o caixão bateu na terra, soltou seu brado estridente: “Hei...” e também suas lágrimas, as lágrimas que sua filha tanto segurou.
O corpo retornou à terra, a multidão deu as costas e a vida seguiu. A filha despertou do transe, mas não conteve a tristeza. A velha tia juntou-se a ela. Choraram juntas.
– Bênção, minha mãe.
– Oh, minha filha, que pai Oxóssi te abençoe.
– Aqui tá a chave e a escritura. Vou em casa me trocar e já lhe vejo no terreiro.
– Vai, minha filha, vai que tem muito trabalho pela frente.
O marido tentou intervir, mas depois daquele olhar só teve coragem para dizer: “Vai, bem, deixa que eu tomo conta do pequeno".
⚡⚡⚡
Autor : Rodney Willian Eugênio
Povo da floresta🌿

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O 1º PRETO VELHO

 O 1º PRETO VELHO


Pode ser arte de 1 pessoaUma antiga lenda contada por velhos juremeiros do Nordeste diz que o primeiro mestre negro que chegou no Brasil se chamava Joaquim.
Este era seu nome de batismo cristão. Seu nome africano, provavelmente em língua kimbundu, se perdeu.
Mestre Joaquim era sábio de nascença. Na Mãe África, em terras de Angola, desde cedo ele observava os kimbandas ou curandeiros locais. Joaquim aprendia tudo o que via. Levado por um tio materno, um grande kimbanda, ele recebeu cedinho a sua iniciação no culto, Joaquim foi ensinado a observar a Natureza e a descobrir o mistério atrás de cada folha, raiz e árvore.
Mãe Ntoto, o grande Nkizi (espírito natural e transcendente) da Terra, acolheu o jovenzinho e transmitiu sua bênção regeneradora a ele.
Crescido, o rapaz não teve tempo de formar família. Guerras tribais o levaram longe da aldeia, onde foi aprisionado e embarcado para a distante nação brasileira.
Desembarcando em porto nordestino, foi vendido. Trabalhou na lavoura dia após dia. Quieto, mas não passivo, observou o sofrimento de seu povo.
Nas poucas horas de tranquilidade atendia aos doentes. Com o auxílio dos espíritos de Mãe Ntoto, descobriu as funções das ervas que aqui cresciam. Preparava breves, poções e mezinhas.
Quando tinha chance, amoitava-se e penetrava no mato, onde falava com os espíritos locais, invocava os ancestrais e rezava aos Minkizi (o conjunto dos Nkizi).
Certo dia foi procurado por um índio velho, que administrava uma pequena propriedade de um capataz branco. O índio tinha observado as atividades de Joaquim no mato e ficou muito curioso...
Uma amizade forte e espiritual nasceu deste encontro. Foi com este índio que Joaquim conheceu os poderes da Jurema.
Numa noite ele bebeu da cuia de Jurema do velho tuxaua, sentiu seu corpo frio como a morte, percebeu a mente crescer e ganhar asas...
A alma de Joaquim voou pelos céus e viu as casas ficarem pequeninas, a Lua ficar mais perto e as estrelas parecerem mais brilhantes.
Lá no firmamento parecia existir uma luz desconhecida e ele seguiu até lá. O luzeiro foi ficando mais perto e Joaquim encontrou uma aldeia, com gente, casa e tudo.
Um cacique desconhecido chegou perto dele e o recebeu com alegria e dignidade. Joaquim entrara misteriosa na Cidade dos Mestres, na Aldeia do Juremal ! O que ele realmente viu e aprendeu lá nunca contou a ninguém. Mas quando voltou à terra dos encarnados, ele não era mais um Joaquim, era o Mestre Joaquim!
O tempo corria e nosso mestre, ainda escravo, foi consumindo seu corpo no serviço desumano imposto a sua raça.
Um tarde ele se aconchegou depois do trabalho, fechou os olhos e morreu. Sua alma foi levada novamente para a Cidade Santa e entrou triunfalmente no santuário da Mãe Jurema, louvado pelos mestres e mestras, profetas e guerreiros.
Certa madrugada uns caboclos montaram uma mesa (sessão espiritual de jurema), cantaram e abriram as portas reais.
Os mestres do Outro Mundo foram baixando um após o outro. Tudo era harmonia e beleza! Um caboclo maduro e mais escuro cantou:
“Mestre Joaquim, é kimbanda!
Veio trabalhar, é kimbanda!
Mestre Joaquim é de Angola,
é kimbanda! É kimbanda!”*
(Nos Pontos ou Linhos mais modernos e populares, a palavra “é kimbanda”, ou seja “é curandeiro”, transformou-se em “esquimbanda”.
Daí perdemos o sentido tradicional africano.)
Esta foi a primeira vez que Mestre Joaquim acostou (baixou ou incorporou na linguagem dos juremeiros) e desde então começou seu eterno exercício de caridade, fruto do amor maior e da ciência sublime.
Mestre Joaquim de Angola, de cachimbo na mão e chapéu na cabeça: O Rei negro da Jurema Sagrada!
O tempo passou depressa... A Umbanda ainda não tinha nascido, mas Mestre Joaquim já procurava outros agrupamentos para levar a sua missão. O negro bantu nunca temeu seus ancestrais e sempre colocou suas almas benditas no coração quente que batia de saudades. Lá nas praias do Nordeste, nas montanhas de Minas Gerais ou no sopé dos morros cariocas, nosso mestre juremeiro africano batia sua bengala e dava seu nome:
Pai Joaquim de Angola! Imagem da bondade, da sabedoria e da humildade.
Quando a Umbanda veio a este mundo, gestada na luz de Cristo, no Axé dos Orixás e Minkizis e abençoada pela energia dos pajés, Pai Joaquim foi um dos primeiros guias a se apresentar.
Afinal já era preto velho diplomado! Pai Joaquim baixou e nunca parou de trabalhar.
“Pai Joaquim, ê, ê,
Pai Joaquim, ê á,
Pai Joaquim veio de Angola,
Pai Joaquim é de Angola, Angola á!”
*Usamos neste artigo a palavra Kimbanda em seu sentido tradicional: curandeiro ou xamã bantu. Não é, portanto, uma referência ao quimbandeiro ou praticante da Quimbanda, culto sincrético com poucos elementos bantu.
Por Edmundo Pellizari. Fonte: Jornal de Umbanda Sagrada.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

CARTA DE OBALUAÊ PARA SEUS FILHOS

 CARTA DE OBALUAÊ PARA SEUS FILHOS


Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoasOlá meus filhos, já começo contando um pouco da minha história.
Fui abandonado pela minha mãe a beira mar, e uma linda mulher me pegou, me criou e cuidou de minhas feridas, essa linda mulher é Iemanjá.
A qual me guardou com muito amor. Fui tão bem cuidado, tão bem amado, tão bem recebido, que tive a sabedoria suficiente para entender os motivos de minha mãe Nanã ter me deixado e hoje com muito amor e respeito, danço em frente a quem um dia desesperada me deixou a beira mar.
Ai tu te perguntas: "Mas porque começar a carta contando um pouco de sua história, Pai?".
Porque a parte da minha história e você, têm tudo haver.
Porque de minha história, deixo uma grande lição... O Perdão.
Perdoar aquela pessoa que te fez mal.
Perdoar aquela pessoa que faltou contigo algum dia.
Perdoar, porque você também precisa de perdão.
Eu sei que você guarda muitas coisas em teu coração, as mágoas, as dores de quem um dia tanto te magoou, mas faça igual ao seu pai, perdoe.
Tudo tem motivo, meus filhos, se vocês foram traídos, passados para trás, ou qualquer coisa do tipo, é porque você tinha que aprender algo disso tudo.
Então Perdoe.
Eu sou teu Pai, teu "Velho", como vocês carinhosamente me chamam, estarei sempre ajudando vocês nessa vida carnal e espiritual, estarei sempre orientando a fazer o melhor, minha energia sempre estará espalhada em tudo que vocês fizerem e vocês sentirão que estou ali, pois eu sempre mostrarei de alguma forma.
Mas não guarde rancor, mágoas em seu coração.
Seu coração é puro, sincero, não perca isso.
Ah... e mais uma coisa, não tenha medo de nada nessa vida carnal.
Eu sou o Pai de vocês, eu guio, vigio, cuido e se tiver que fazer justiça, eu farei.
Se você errar, eu vou te ajudar a levantar.
Mas se te derrubarem, eu vou cobrar.
Eu sou o senhor da vida, senhor da morte.
Te escondo, te protejo, e te cuido debaixo de minhas palhas.
E com meu silêncio, deixo seu inimigo mudo.
Continue sua caminhada, pois eu estou contigo até o fim.
Atotô.
Fonte: Filhos de Aruanda.