sábado, 14 de setembro de 2019

EXORCISMO CIGANO Parte I por Asséde Paiva

Este livro é dedicado a meus antepassados, que viveram este estranho acontecimento.  
Em 1823 (ou seria 33), em Ariano de Puglia, na província dos Avelinos, um menino de 12 anos, analfabeto, foi possuído pelo demônio. Os padres dominicanos Gassiti e Pignataro impuseram a satanás, em nome de Deus, que provasse teologicamente, com um soneto de rimas obrigadas, a Imaculada Conceição da Virgem. 
O pequeno endemoniado pronunciou este soneto: 
Mãe verdadeira sou dum Deus que é Filho
e filha Dele sou, sendo sua Mãe.
Nasceu na eternidade e é meu Filho,
eu no tempo nasci e sou Mãe.
Ele é meu Criador e é meu Filho,
Eu sou Criatura e sou Mãe.
É prodígio divino ser meu Filho,
Um Deus eterno que me tem por Mãe.
Quase comum o ser da Mãe e do Filho
porque do Filho teve o ser a Mãe
e da Mãe teve o ser o Filho.
Ora, se ser Filho vem da Mãe,
ou se dirá que foi manchado o Filho,
ou sem mancha se há de dizer a Mãe.

Il Demonio poeta, in L’amico del popolo, Chieti, 1 (1949), fasc. XXX1V, p. 3.

PRÓLOGO

Há no céu e na terra, Horácio, bem mais coisas, do que sonhou jamais vossa filosofiafia.
(Hamlet, ato III, scene v)

 Poderíamos começar esta história com aquela imaginação que tínhamos em nossa meninice. Não somos mais crianças, mas não estamos impedidos de sonhar, de realizar e de fazer acontecer. E, sobretudo, não estamos impedidos de recordar.
Costumes, ritos, tradições e leis vêm se formando, cristalizando desde imemoriais tempos. Nossa vida é recheada de sonhos, visões, encantamentos, realidades e fantasias. Lições de fé, de coragem, enfrentamento do mal, derrotas e vitórias. É amor irrealizável, é tristeza, e principalmente um profundo e misterioso conjunto de desenganos vertidos gota a gota. Quem tiver sensibilidade para intuir mensagens, certamente as lerá nas entrelinhas. São secretas e vedadas aos profanos, mas um livro aberto para os que querem ir além da letra. No final você será um iniciado, descobridor do insondável, o incrível, o fantástico, o extraordinário.
G: A: D: U: antes de criar o mundo criou anjos. Um deles, o predileto, se perdeu na soberbia, a marca da origem divina se apagou, porque foi manchado com o veneno da inveja, e assim, do bem ao mal foi um repente. Sentiu ciúmes, queria ser igual ao Pai, conspirou, convenceu anjos, serafins, querubins, tronos e potestades e lutou. Ele era Lúcifer, o Portador da Luz, que se tornou o portador das trevas: o Mal.
Esta é a aventura de um menino e uma menina. Ela, dominada pelo mal; ele, o puro, porém, nos vaivens da vida, ele é que ficou com desespero e dor.
O demônio, o sumo sacerdote do mal, por meio de sortilégios dominou a moça e, tal qual vampiro, sugou suas forças. Com o poder de ensalmos e da energia de uns ciganos, o bem prevaleceu.
No combate final, ganhou o bem... Ah!... Assim eu conto a história... Onde está a graça?

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OS CIGANOS

Quase meia-noite após um dia quente de janeiro de 1925. A lua-cheia brilhava tanto que parecia iluminar toda paisagem em derredor do rio, do bosque e dos ciganos, ali acampados. Fogueira acesa estralava bambus secos e animava o pessoal daquele acampamento. Moças lindas, alegres e com vestidos esvoaçantes dançavam em volta do fogo. Os rapazes só as observavam. Garotos que já deviam estar em suas tendas, corriam de uma para outra, como fazem todas as crianças do mundo. Crianças ciganas são mais vivas, mais alegres e mais livres e contentes com a vida ao ar livre. O grupo estava festejando um casamento. Após as discussões de praxe, dois velhos barôs (chefes), ambos com família numerosa e que viajavam unidos, depois de tomarem um sifrit e de ficarem horas de cócoras, fumando seus cachimbos de prata, chegaram a um acordo de casamento dos seus filhos Karina e Justo. Ela com 10 anos e ele com apenas doze. Coisas de costume cigano. Família do noivo de um lado, a da noiva de outro. Três velhas da tribo entraram na tenda da moça e logo depois voltaram com a marca de sangue no lençol. O sinal da virgindade. O capitão chamou os nubentes e lhes entregou uma bilha, que lançada ao chão, partiu-se em mil pedaços. Juntaram os cacos como se fossem fino alabastro e guardaram ciosamente, pois significavam a felicidade do casal. Violinos e pandeiros emitiam sons de festa. Eis que de repente o fogo decaiu rapidamente, e um vento frio totalmente atípico para a ocasião, pois era tempo de calor, balançou as barracas arrancando algumas de seus espeques. Como é que pode um vento esquisito daqueles? Em pouco tempo, da fogueira só restavam brasas e nada havia que pudesse avivá-la, nem lenha nem graveto nem mexer nos tições, nem sopro... nada. Todos então se recolheram rapidamente aguardando o pior. Súbito, veio uma ordem: desarmem as barracas, vamos partir agora! Ninguém discutiu. Silenciosamente e fantasmagóricos, sombrios, recolheram os pertences, enrolaram colchas, desmontaram cadeiras e puseram nas costas ou nos animais que foram encangalhados num átimo. Mas porque tão repentina saída? É que a bruxa do grupo, a chovihani, como eles dizem na sua língua arrevesada, recebera um “aviso”. O mal estava naquele lugar. Tudo levaria a crer ser uma verdade indiscutível. A lua desaparecera no céu, agora, escuro, Um ou outro filtro de luar rasgava nuvens cirrus e/ou cúmulus e dava uma claridade pálida ao ambiente. Um pouco distante, no alto de uma colina, luzes bruxuleantes de uma lamparina aclaravam as janelas de uma fazenda. Aqueles pontos de luz apagaram e ela ficou totalmente às escuras. Não havia mais referência.
E os ciganos silenciosamente, medrosos, olhos baixos, deixaram aquelas paragens com terror agônico estampado na face. Pareciam furtivos no escuro. Passos inaudíveis. Os ciganos geralmente partem tranquilos, mas naquela noite, escura, estavam singularmente apressados, quase correndo. E veio a chuva... torrencial. Relâmpagos e trovões aterradores. O vento acossava ferozmente aquelas pessoas. Eles tinham que ir pelo morro Alto. A enxurrada dificultava muito. Vez por outra, pedaços de terra molhada escorriam pelo barranco abaixo assustando os animais. Um deslizamento maior levou cavaleiro e dois filhos pela fenda abaixo. E os ciganos cada vez mais medrosos chicoteavam as bestas tentando aumentar a velocidade da alimária morro acima. Inutilmente, os animais já sobrecarregados, a custo subiam, eles escorregavam no cascalho, pisavam em falso; era muito dificultosa a subida que também era íngreme. Finalmente, chegaram ao topo e pararam para verificar as perdas e rearranjar a tropa. E raios e clareavam o céu como se fosse dia claro. Alguns bipartiam e bipartiam traçando verdadeiras árvores desfolhadas nos céus e apagavam e vinham outros. Logo adiante era a travessia da ponte-coberta. Então gelados de terror pararam. Foi preciso ordens severas do chefe, da matriarca da tribo e garantia da feiticeira que podiam passar. Um a um foi passando. Eles tampavam o rosto, encolhiam tremiam e gemiam. Adiante davam suspiros de alívio, pois estava fora da ponte e ilesos. Demonstraram estar ainda muito assustados. Fugiam certamente de algo muito mau... Um denso nevoeiro abateu sobre eles foi tão repentino. Antes estava quente, depois a tempestade e finalmente aquela névoa tão espessa que se podia espremê-la entre dedos. E então foram engolidos... desapareceram... como se tragados por gigantesca boca. Caso estivessem por ali, quando a aurora aconteceu, ficariam surpresos ao ver que a moita de bambu sob a qual passaram ao sopé do morro, estava amassada, rente ao chão, como que submetida a um rolo compressor e toda vargem que se seguia, estava coberta de lama negra.

ADVENTO

O ciclo (re)começou com um ato de amor. Como resultado duma relação, o homem depositou no ventre da mulher milhões de bons nadadores. Esses, algumas vezes, atingem a espantosa cifra do bilhão. Foram lançados em um lago donde deverão iniciar a mais fantástica competição de que se tem notícia.
Iniciam a luta em ambiente adverso; o meio líquido é composto de secreções ácidas. Os menos aptos se perdem por ali e centenas de milhares são mortos imediatamente. Sobreviventes continuam nadando; algo maravilhoso vai acontecer. Lá vão eles: penetram na cérvix; percorrem-na em média, de dois e meio centímetros a cada oito minutos; atingem a trompa. O óvulo, o objetivo, vem descendo pelo movimento contrátil da trompa, também em busca do útero.
O gameta masculino tem nos mitocôndrios, aderidos em volta dos filamentos espiralados, todo material energético de que necessita para a realização integral da missão. No acrossoma, localizado na cabeça, um centro emissor de ondas extremamente sensíveis o dirige para o verdadeiro destino: o gameta feminino. Ambos segregam a substância base da fertilização: a molécula trifosfato de adenosina. Ela provocará uma reação química que possibilitará a formação do zigoto e o fluxo elétrico de íons de potássio, cálcio e sódio na superfície do óvulo. A liberação dos íons de sódio permitirá não só a fertilização, mas, também fará o óvulo fecundado rechaçar outros espermatozóides.
O esforço é terrível, os competidores estão contra a corrente, pior ainda, em completa escuridão e quase sempre, em sentido vertical. Têm que vencer a gravidade.
Nesta formidável concorrência, vez por outra, todos perdem. Porém, um ou alguns, teoricamente, deverão vencer. Os mais competentes ou os de mais sorte ou, quem sabe, os que foram designados para cumprir algo muito superior a simples reações físico-químicas. O prêmio para o ganhador será a vida, enquanto os derrotados perecerão, inapelavelmente.
Enfim, alguns milhares atingiram a meta colimada. Mergulham, frontalmente, contra o óvulo. Ricocheteiam, escorregam, machucam-se, insistem desesperadamente. Buscam a sinergia com a célula feminina. Depois de várias tentativas frustradas, só duas células, (espermatozóide e óvulo), cônscias das necessidades e determinismos, interagem e interatuam. Os vórtices das espirais cromossômicas, pela sintonia eletroquímica, se fundem; agora é um ovo. Há um cataclismo, repetindo em microscópica escala a criação do mundo. Um endurecimento celular, formando a membrana de fecundação, isola a capa ou superfície do óvulo fecundado dos demais gamelas masculinos, os desfavorecidos. Inicia-se uma vida
Eis aí o princípio. Mas, neste caso, um desvio, um defeito, um senão aconteceu: os ácidos nucléicos não se combinaram corretamente, a mensagem genética falhou o cromossomo Y, que geraria o novo ser do sexo masculino, ficou imperfeito, defeituoso, uma falha desprezível, mas suficiente para marcar toda a vida futura. Ah! Quão infeliz ele seria.
O que teria acontecido? De quem seria a culpa? Da natureza? Dos pais? Do karma? Por que alguém nasce definitiva e duramente estigmatizado perante si próprio e perante a sociedade? Como fica a questão de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus? Um indivíduo problemático é a face de Deus?
O corpo espiritual, a alma ou espírito tremia de pavor, relutava em obedecer ou, retornar a Terra. Foi necessário que outras potências acudissem e o envolvessem com fluidos de amor fraternal. Raios do puro espírito circularam com o fulgor de uma estrela aquele corpo etéreo, que então cedeu. Reduziu-se a nível infinitesimal e encarnou.
No momento do fiat, ocorreu o fenômeno da obnubilação do passado, a travessia do Lethes, o esquecimento. O bebê nada recordaria da vida anterior, exceto por alguns lampejos de memória que nem ele, nem ninguém levaria a sério.
O milagre da vida aconteceu. A minúscula célula era um ser humano. Enquanto na barriga da mãe, não tinha noção clara do ambiente. Estava ao mesmo tempo bom e ruim. Mergulhado no líquido amniótico, era bem protegido do ambiente externo. Através do cordão umbilical recebia os nutrientes vitais. O espaço restrito e escuro, o silêncio total. Apenas sentia uma angústia que o deveria acompanhar a vida inteira.
O tempo passando, as forças do embrião e depois do feto cada vez mais intensas prenunciavam um neném sadio. As atribulações começaram...

O  INFERNO

O dele começou pela rejeição. A futura mãe não queria a criança. Tinha dois filhos, era muito. A vida dura, duríssima; o marido trabalhador braçal, pessimamente remunerado, mal ganhava para sustentar os quatro membros da família. Na pobreza, quase miséria, uma boca a mais não era motivo de júbilo. Pobrezinho, indefeso no útero da mãe: desprezado, inesperado e indesejado.
Eram tempos difíceis, a mulher, a contragosto do esposo, resolveu abortar. Dava socos no ventre, provocou algumas quedas, tomou ervas, entre elas arruda e artemísia e não conseguiu êxito. Conversou com as comadres, bebeu garrafadas sugeridas por elas, chegou a provocar pequena hemorragia, pela introdução no ventre de um talo de mamona tudo em vão. Ele, o feto, resistiu até às toxinas resultantes do tabaco do cigarro, que a mãe gostava de pitar. Contudo, teve o sistema nervoso central danificado pelos tóxicos, e danos mentais irreparáveis, pelas forças, pensamentos, emoções, idéias e imagens negativas da genitora, o que lhe trouxe, mais tarde, moléstias de fundo psíquico e uma vivência delirante, paranóia mesmo.
Ainda no ventre materno, percebia como um troar de canhões os ruídos dos gases intestinais e o bombear constante do coração. E era um horror...
Chegou o dia aprazado para ele vir à luz. Foi uma terrível viagem, que durou horas de pura agonia para a mãe e o filho. O bebê era cabeçudo e não ocorrera dilatação suficiente. De início, ele perdeu o oceano de serenidade, representado pela bolsa d’água que se esvaiu. E depois, a incrível sensação de sufocação e a compressão pelas contrações; o aperto do canal, o túnel vaginal; o cordão umbilical enrolado no pescoço; os puxões e torções da parteira curiosa; o brilho cegante das luzes, na saída. Depois, os sons atordoantes do ambiente externo, como trovões, as dores para respirar finalmente, os roncos dos pais.
O somatório de tantos traumatismos o marcou profundamente. Considerando que o parto fora “natural”, pois na roça e naqueles tempos não se falava em cesárea, houve um pequeno atraso na travessia e o nascituro quase morreu por anoxia.
A demora desta dramática délivrance lhe trouxe fobias por lugares apertados e por escuridão. Tais sucessos deram início ao pagamento das dívidas pretéritas, pois nada acontece por acaso, não é mesmo? O programa começara a ser cumprido e as complicações eram partes do resgate.
Primeiros meses de vida. A criaturinha não tinha noção do entorno. Distinguia, vagamente, vultos, vozes, luz, sons e diversos movimentos. Nestes aspectos, era normal como qualquer neném. Chorava muito; não se sabia por quê. Um dia, removendo as palhas do bercinho de taquara, uma das parentas da criança notou pequenas manchas de sangue no lençol. Viu surpresa, centenas de percevejos que, à noite, sugavam o petiz, sendo esta a razão de ele ser tão fraquinho e de ter uma fome insaciável. Isto lhe causou outro problema: a mãe, por não produzir leite suficiente, dava o bebê a toda crioula que aparecesse para que o amamentasse. Mais tarde diriam que ele mamara em sete negras, o que era uma ironia dolorosa em tempo de tanto preconceito e atraso.
Ainda no período inicial de vida, punham-no para dormir, durante o dia, num berço suspenso no teto e assim o balançavam, doidamente, até que parasse de chorar e dormisse tonto pelo vaivém do ninho. Tal movimento possibilitava ao bebezinho ver, pela abertura da janela do quarto, as pedras sobre as quais se assentava a fazenda em que moravam e que era, também, o piso de um enorme chiqueiro que avançava sob o assoalho, vindo daí o pavor pelas alturas e o medo insensato pelos porcos.
A casa onde moravam, por favor, de uma parenta afastada (era a bisavó), fora feita de pau-a-pique e ripas de palmito, amarrados com cipó e embiras de candiubá. Alta, encravada na encosta de um morro, inúmeras vigas e colunas de madeira sobre pedras de alvenaria a suportavam. O porão, nos velhos tempos, fora a senzala, casa de máquinas e local para armazenagem de grãos em tulhas e surrões. Hoje, era parte chiqueiro, depósito de lenha e galinheiro. Era chamada de fazenda velha, antes era Morro Alto. Há muito não havia mais escravos. Os remanescentes abandonaram-na, terminada a escravidão. Da morada restava a estrutura, o embasamento de pedra, que tinha resistido a tudo, bem como as paredes um tanto esburacadas e empenadas e caiadas. Era assobradada, sendo a parte superior formada pela varanda, numerosos quartos, duas ou três salas e a cozinha. Os principais cômodos eram tabuados de madeira; a cozinha e a despensa, de terra batida. Circundavam-na um estábulo caindo aos pedaços e sem utilidade, porque a família não tinha posses para comprar vacas ou qualquer animal, e num belo pomar podiam-se colher frutas variadas, ouvir os pássaros e ver o beija-flor sugar o néctar das plantas. Cobras e cascavéis habitavam aquelas paragens.
Aquela criaturinha, bem ou mal, sobrevivia e crescia como se diz, na roça, ao deus-dará. Sim, pois, antigamente, médicos e medicina eram coisas de cidade. Todas as doenças eram cuidadas por curandeiros com benzimentos, raízes e homeopatia. Se tudo falhasse, ocorria a morte do paciente.
Os pais, que tinham como riqueza o dia e a noite, não podiam esperar um brilhante futuro para o filho. E não esperavam mesmo. Entretanto, seus ancestrais foram ricos. Graças à burrice, aos maus negócios, à preguiça e, eventualmente, ao excesso de bondade, perderam tudo, deixando os filhos com as mãos abanando, enfim, na miséria. Apesar de tudo, aquela família pretendia vencer na vida. Ambiciosa, desejava se livrar do manto da pobreza. A maneira que escolheram para melhorar de situação pressupunha sacrifícios inauditos, como passar fome. Assim, na base do mingau de fubá e couve, conseguiram poupar algum dinheiro. A consequência foi anemia, escorbuto, avitaminose, raquitismo e outros males. Ainda assim, Antônio superou esses obstáculos. Ele fora balizado com esse nome em homenagem ao bisavô, Antônio Araújo Gomes.
Seu Gomes construíra a fazenda da Legalidade a troco de nada. Fora muito mau e pouco se importava que trabalhadores morressem durante as obras.
Garantiam, segundo as conversas ao pé do fogo, nas noites de frio, que a fazenda era assombrada. Diziam que, por volta da meia-noite, na lua cheia, escutava-se um arranhar na porta da sala. Sinhá Dona ia abrir. Um enorme cão preto entrava se dirigia ao dormitório e deitava sob a cama. Ela chamava o marido ou outra pessoa para enxotar o cachorro. Quando entravam no quarto, onde ele deveria estar nada encontravam. Também percebiam, com nitidez, o barulho dos negros socando sal ou café torrado e pilando arroz na senzala: tum, tum; tum, tum... noite inteira. Alguém que se atrevesse a ir ao porão perdia tempo; estava deserto. Só porcos se espojando e grunhindo. A qualquer hora do dia ou da noite, se ouvia o farfalhar característico do vento agitando o canavial. Folhas e caules dobravam e quebravam ao sabor do vendaval. Pura fantasmagoria. Certa feita, o velho Gomes resolveu enfrentar o bicho. Armou-se com um cacete e foi para a plantação, gritando palavrões.
“Se é o capeta apareça! Não tenho medo de nada!”
Alguma coisa tomou-lhe o bastão e deu-lhe uma sova, deixando-lhe o corpo moído. Desde então, nunca mais topou enfrentar o desconhecido.
Mais um tipo de assombração acontecia naquela casa. De vez em quando, o moinho trabalhava a noite toda como se estivesse moendo canjiquinha ou fubá. Acontece que, do moinho, só restava a casinhola de pedra. Não tinha água, setia, pedra de moer, cuba, nada. A casa era assombrada sim.
Outrora, a fazenda conhecera tempos áureos; o fim da escravatura trouxera-lhe a decadência. Seria, realmente, assombrada? Erigida com tanta maldade, merecia ser. E era.
Toninho passou a infância ouvindo diariamente estas histórias, contadas por idosos que juravam ter presenciado alguns acontecimentos. Ele assumiu tudo como pura verdade. À noite, tinha pesadelos incríveis, sendo envolvido por seres estranhos e arrebatado para lugares tenebrosos. Sim, porque as conversas daquele tempo giravam em torno de mula-sem-cabeça, lobisomem, saci-pererê, mãe-d'água, caipora e outros duendes. Personagens folclóricos, mas com ares reais. Além disso, o grande predomínio dos padres e da religião incutia nas cabeças as idéias de céu (para os bons), inferno (para os maus) e purgatório (para os mais ou menos), com pesada carga psicológica adversa. Era a igreja da culpa. Neste período negro para a formação moral, mental, intelectual e espiritual do menino, ele se sentia oprimido pelos poderes demoníacos; ansiava pelas benesses do paraíso, por se livrar do purgatório e das forjas infernais.
Ele se responsabilizava por tudo que fazia ou deixava de fazer e pelo que pensava. Tudo era proibido: não faça isto, não faça aquilo, porque faz mal à saúde ou porque é pecado ou, ainda, pelo prazer dos pais e outros parentes em proibir.
De culpa em culpa, tornou-se introvertido, anti-social, visionário e complexado. Não podia ficar perto das visitas e ouvir as conversas, porque era criança. Chegaria o dia em que não poderia brincar: era um mocinho. Estava sempre deslocado, do lado errado, excluído das brincadeiras, chegou a pensar que era invisível, pois ninguém ligava para ele. Então, virou uma ostra: fechou-se literalmente.
Quanto ao pai, o senhor Lisandro, não se podia culpá-lo tanto. Trabalhava de sol a sol. Ignorante e bruto sofria de acatalepsia, não cultivava qualquer sentimento paternal. Para ele o trabalho e a alimentação eram os motivos da vida. Queria progredir: os filhos que se virassem.
A mãe, dona Leocádia, subserviente como quase todas as mulheres daquele tempo, não tugia nem mugia. O que o marido fizesse estava bom. Cuidava da casa, dos filhos, segurava o máximo para que algum dia pudesse ter uma vida melhor. Amor maternal era mercadoria escassa. A grande obrigação era ter filhos. Utilizava empregada para cuidar das crianças, pois, em geral trabalhava a troco de comida e de uma enxerga. A vida era assim.
E Toninho foi crescendo naquele espaço restrito: do espírito cuidavam os padres; da matéria, os genitores.
Certa vez, com quatro para cinco anos, sucedeu um fato marcante: ouviu o pai dizer que ratos ou gatos estavam comendo os queijos e que iria dar um jeito neles. Sequer imaginou a natureza das providências. No dia seguinte, o pai chamou os bichanos, eram quatro, sacou o revólver e atirou em todos, ali mesmo na cozinha. Inenarrável e traumático dano psicológico causou ao filho, que chorava ao ouvir aqueles estampidos e o fogo da boca do revólver. Nos tenros ouvidos soavam como explosões de dinamite. Dois animais feridos correram para o terreiro; um se enfiou debaixo de uma pedra, sob a escada. O menino desceu dois lances e, olhando por uma fenda, encarou o bichinho de estimação. Eles não compreendiam a estupidez cometida. O gato morreu em seguida e o garoto ficou imbecilizado. Daí, toda vez que ouvia um tiro, tremia, gritava e chorava descontroladamente. Mais tarde, descobriram que não foram os felinos que comeram os queijos. A matança fora injusta.
As estórias de terror, bem como as atuações falhas e irresponsáveis dos pais, faziam efeitos danosos na mente e no corpo do menino, mas havia pior: naquele tempo existiam numerosas doenças incuráveis, as mulheres adoravam conversar sobre as pessoas que padeciam de males como raiva ou hidrofobia, diabetes ou urina-doce, tuberculose ou tísica, lepra ou morféia, sífilis e outras. Nessas conversas estúpidas e sem sentido prático, entravam em detalhes sobre o padecer dos doentes:
“Lembram-se da comadre Idalina, que foi mordida de cachorro doido? A pobrezinha como sofreu! Queria beber água e não podia, ficava num quarto escuro. A simples claridade através da abertura de uma porta lhe causava dores violentas. Ninguém podia lhe pôr as mãos: mordia-as. Teve que ser amarrada às barras da cama. No fim teve que tomar injeção para morrer.”
“E o compadre Belo” dizia outra querendo contar um caso mais grave. “Está internado na colônia São Juliano, morfético. É uma pavorosa doença, mata aos poucos. No princípio não sentia nada. Começou com pequena mancha branca no braço, não se importou; às vezes brincava se dando tapas e muçungas, fingindo não doer. A doença avançou muito. Perdeu alguns dedos, as orelhas e parte do nariz. Aquele não volta mais. Também era muito ruim; viram-no mordendo pêssegos no quintal e jogando-os para as crianças do vizinho. Queria transmitir a doença para os outros, o tratante.” E assim ele aprendeu que leproso, camunhengue, gafa eram a mesma coisa, tantas vezes foram ditas que ele as assumiu como sinônimo de morte certa.
As conversas prosseguiam por horas a fio nesse tema: fulano sofria do mal-de-terra (epilético); sicrano morreu com urina-doce (o diabetes); aquela doença (câncer); beltrano, tísico, escarrava sangue. Até separaram os seus utensílios, ninguém entrava no quarto. Alguém morrera com nó-nas-tripas e assim por adiante.
Toninho ouvia esses diálogos sadomasoquistas que o massacravam. Ele se tornou um obsessivo e hipocondríaco. Apalpava-se para sentir a sensibilidade, olhava a pele para descobrir possíveis marcas, bebia urina para saber se estava adocicada e, a qualquer tosse, se julgava tísico no último grau. Andava sozinho pelos cantos da casa, por detrás dos portais e das colunas, elucubrando sobre falsas doenças, procurando em cada sinal do corpo o indício do mal que o levaria à tumba. Era fobófobo. Difícil imaginar tanta angústia. Nem a mãe, nem os parentes e as comadres tinham a mais tênue idéia dos malefícios que aquelas conversas insanas causavam à criança que as escutava por detrás das portas, com aparente indiferença.
Um dia, ele notou algo... sim. Ouvira as palavras quebrado, rendido, não dera atenção. Demasiado pequeno, pensava que o assunto não lhe dizia respeito. Estava enganado. Aos doze anos fora, com outras crianças da mesma faixa de idade, nadar num córrego que passava no fundo da casa. Como acontece nas farras de garotos, todos ficaram nus para mergulhar nas águas frias do regato. Nas brincadeiras que se seguiram, apontavam os perus de uns e outros: grandes, pequenos, finos, grossos, quando um deles, observando Toninho, gritou: “que sacão!”
Gargalhada geral. Envergonhado, tampou o sexo com a mão, pegou as calças com a outra e foi vesti-la atrás das árvores, no pomar perto da casa. No quarto, se trancou e tirou a roupa para um auto-exame. Observou que a bolsa escrotal era exageradamente grande e desequilibrada: pelo tato, sentiu que o carocinho do lado esquerdo era minúsculo, se comparado com o do lado direito. O lado maior era cheio de veias que deixavam a pele com pequenas protuberâncias. Se ele não fosse tão ingênuo, saberia que tinha varizes. Subiu as calças e pôs-se a cismar: sem dúvida era diferente dos outros. Talvez fosse uma doença grave. Nunca mais tomou banho em conjunto e de jeito nenhum tirava a roupa perto de outra pessoa. Pensou em contar para os pais, desistiu; não via razão e tinha vergonha. Aguentou firme o problema, depois se conformou: era diferente e pronto. Fechou-se em copas e ficou cada vez mais arredio e enigmático.
Com tanta carga de problemas mal postos, o tempo foi passando, ele crescendo, sempre distante, ensimesmado e com tremendo complexo de inferioridade.