quinta-feira, 5 de julho de 2018

NÃO SE LEVANTA! - I

João Batista e Margarida mostravam-se exultantes, junto à pia de batismo na igreja de Santo Antônio. O padre Marino, espanhol magriço e ossudo, arengava um latim ininteligível e aspergia de água benta a Hortência, a primeira filha do casal. Os patrões de João Batista, "seu" Marcos e dona Merenciana, sua esposa, donos do armazem "Arco-lris", faziam as honras de padrinhos. A festinha do batizado fora simples e pródiga de doces, salgadinhos, refrescos e cervejas, terminando quase de madrugada, após muitas danças ritmadas pela harmônica do Germano.
Hortência era moreninha; de cabelos pretos, os olhos castanhos. Muito viva aos cinco meses. Os pais pobres e o advento da primeira filha, embora significasse um acontecimento auspicioso, aumentara as preocupações agravando o orçamento do lar. Infelizmente, passado um ano do nascimento de Hortência, João Batista sentiu-se mal no armazém, febril e com dores no baixo-ventre. Apesar das tisanas de camomila, chá de losna e erva-doce, receitada pelas comadres vizinhas, o médico foi chamado às pressas. Mas já era tarde, pois João Batista mal chegou ao hospital falecia de apendicite com peritonite. Margarida, além de viúva, ficou grávida, sem aposentadoria, sem seguro de vida ante a imprudência do esposo, nada provendo para a família no futuro.
Decorridos quatro meses da morte de João Batista, nascia Guiomar, outra menina morena, bem nutrida, significando novos gastos. Margarida atirou-se decididamente à luta e pôs-se a lavar, passar e serzir roupas para criar as filhas. Felizmente, elas gozavam de boa saúde, mas à medida que cresciam, era fácil de se observar a diferença entre o caráter e o temperamento de ambas. Guiomar, quieta e afável, entretanto, de espírito calculista, sovina, exigindo recompensas pelo mínimo favor prestado a qualquer um. Hortência, embora mais pródiga, era má e irascível, além de orgulhosa.
Margarida pedalava a máquina de costura durante o dia e pela madrugada afora, a fim de obter o sustento mínimo da família. Infelizmente, má alimentação, trabalho excessivo e fadiga, minaram-lhe a resistência orgânica, e a tuberculose tomou conta dos pulmões. Nem chegou a sofrer os quadros trágicos da doença insidiosa. Morreu em poucos dias, justificando plenamente os dizeres dos vizinhos: "Margarida estava à beira do túmulo; a tuberculose unicamente lhe deu um empurrão!"

Hortência tinha quinze anos, quando ficaram sozinhas no mundo, obrigadas a aceitar tôda sorte de empregos para sobreviverem no lugarejo pobre onde tinham nascido. Eram infelizes órfãos entregues à própria sorte, num mundo agreste e mau!
Certa manhã, Hortência levantou-se apreensiva, pois alguma coisa estranha ocorria-lhe nos ossos, à altura da coluna vertebral, onde uma forca esquisita parecia-lhe inclinar o corpo para a frente. Assustada e aflita, semanas depois ela percebeu os braços pendendo em demasia para diante, contrariando a forma habitual. Lentamente foi-se modificando.
Decorrido algum tempo ela já se movia num balouço grotesco, com braços e mãos pendentes, lembrando a oscilação dos pêndulos de relógios. O rosto moreno, amarelecento, de traços duros e antipáticos. A cabeça angulosa coroada por uma cabeleira espetada e fôsca. Èste aspecto asqueroso tornava-lhe a vida mais difícil. Negavam-lhe trabalho, e os conhecidos antigos procuravam evitar até o simples encontro com ela. Nas festas da igreja local, desprezada, ela se refugiava num canto, obstinada e de olhar duro, sem esconder sua agressividade. Guiomar, bem feita de corpo, de formas arredondadas e voluptuosas, passava de braços com as companheiras, numa garridice e trejeitos sensuais de moçoilas casamenteiras. Hortência, no entanto, via fugir a cada momento a possibilidade de arranjar um marido que a amparasse pela vida fora.
A doença estranha avançava rápida e impiedosa. Quando Hortência foi examinada por um especialista da Capital, o diagnóstico foi chocante e desconsolador; era a hipertrofia da coluna vertebral com deformações irreversíveis. Ela então foi-se curvando, paulatinamente, para o chão. Os braços, para a frente, davam-lhe um aspecto ridículo; alguns meses depois ela tocava o chão com as pontas dos dedos, despertando piedade nas almas boas e repulsão nas insensíveis. Guioimar ficou atarantada com a desgraça insuperável da irmã e deplorava o fardo oneroso que isso lhe causava na vida moca, cheia de sonhos. Porém, tornou-se indiferente à sina de Hortência, e sua alma primária e inescrupulosa sentia certa satisfação mórbida, ao vê-la caminhar trôpega e balouçante, oscilando os quadris e os joelhos, tocando no solo com os dedos sujos e unhas enegrecidas.
Hortência ao completar vinte e cinco anos tinha a fisionomia completamente simiêsca, causando susto e asco. A testa era um mapa geográfico, com mil rugas, pelo esfôrço de olhar para a frente, sem poder erguer a cabeça. O movimento espasmódico e antinatural fizera dela um objeto de escárnio para a gurizada traquinas e inconsciente, que a apelidaram de "relógio de parede"! A infeliz aleijada já cogitara algumas vezes do suicídio, todavia o espírito egocêntrico e ainda essencialmente apegado à vida física dava-lhe forcas para prosseguir naquele corpo deformado. Confiante no milagre de uma cura imprevista, vibrava-lhe na alma a esperança de encontrar algum mago poderoso, capaz de livrá-la da enfermidade tão repulsiva. Isso lhe animava o andar trôpego pelas ruas, malgrado reconhecer-se uma caricatura humana. Certa vez, abalada nas fibras do ser, ouviu alguém verberar a estupidez de Deus, que ao "fazer a criatura à sua imagem, produzira um monstro!"
Guiomar, enojada, punha-lhe a comida no prato e Hortência alimentava-se como um cão esfomeado, abocanhando os alimentos, fuçando o prato, sacudindo-se toda para partir um pedaço de carne com os dentes e sem o auxílio das mãos ossudas e rígidas, que não se dobravam apesar do máximo esforço. Quando se lavava metia o rosto na bacia de água e depois enxugava-se esfregando as faces de encontro aos ombros. O banho do corpo simiesco só era possível com a ajuda de Guiomar, ou de qualquer outra alma caritativa. Infelizmente, Guiomar, espírito irresponsável e ocioso desviava-se cada vez mais da rota de mulher digna, e punha-se a especular com o seu corpo vistoso, em troca de moedas aviltantes.
Algumas vezes retornou ao lar com visíveis sinais de embriagues e censurada por Hortência, esbofeteou-a num assomo de nojo, ira e ódio, exclamando sob o efeito do álcool:

— É uma bruxa! ... Bruxa!... Há de pagar tudo o que me fez!

No dia seguinte, sóbria, sentia remorsos por bater numa aleijada, e punha-se a chorar de modo piegas, enquanto a infeliz irmã curtida pelo destino humilhante, suplicava-lhe, num gesto de mendicância:

— Guiomar! Leva-me desta aldeia miserável! Leva-me para a Capital e lá pode me abandonar! 
E depois de se mover bamboleante pelo quarto, envolta em trapos, Hortência aninhava-se na enxerga imunda, com lágrimas ferventes nos olhos esgazeados pelo intenso sofrimento.
Guiomar conseguiu juntar algum dinheiro e resolveu livrar-se da irmã atendendo-lhe as próprias súplicas. Em fria madrugada partiram de carroça, levando solicitação do juiz local para pernoitarem durante uma semana no albergue noturno. Ao entardecer chegaram a Capital, rumando para o albergue, onde encontraram sopa nutritiva, pouso e banho refrescante de chuveiro. Na manhã seguinte, saíram cedo à rua, com Hortência deformada, a se mover numa ginga grotesca semeando confrangimentos, repulsas e até sarcasmos. As faces cada vez mais embrutecidas pelo sofrimento. Os olhos frios e duros a disfarçarem-lhe a revolta surda. Os gestos bruscos e agressivos. Então formava um conjunto dissonante e indesejável na cidade, enquanto Guiomar sentia-se cada vez mais revoltada em ser o "cicerone" de uma criatura teratológica. Irritada e impiedosa, passou a hostilizar Hortência, responsabilizando-a, também, pela sua própria vida inútil e libertina...


Do livro: “Semeando E Colhendo” Atanagildo/Hercílio Maes – Editora do Conhecimento.